segunda-feira, outubro 01, 2007

CRÔNICA – ACHADOS E MAIS ACHADOS

Por Ivan Lessa*

LÁ POR VOLTA DOS ANOS 70, EU ANDAVA MUITO MAIS DE METRÔ, AQUI EM LONDRES, DO QUE ANDO HOJE.


Na verdade, andar, em qualquer de suas modalidades (a pé, de ônibus, de táxi), se tornou algo extremamente difícil para mim. Sim, já cansei de me perguntar se os 2 ou 3 maços de cigarro por dia, durante quase meio-século, valeram a pena. Para dormir em paz, não discuto comigo mesmo e minto-me achando que valeram. Dormir em paz é força de expressão. Uma das poucas forças que ainda me restam. Isso, no entanto, é história para outro dia. Eu estava no metrô. Nos anos 70. Na companhia de um amigo de passagem por Londres. Fizemos o trecho Gloucester Road-Leicester Square, pela linha Piccadilly, aquela azulona, que todo mundo manja.

Na certa, iríamos fazer a ronda das 3 ou 4 livrarias que nos interessavam e as duas lojinhas especializadas em discos de jazz, que foram para o Beleléu.

Escrevo Beleléu com maiúsculas porque sei tratar-se de um esplêndido país onde vão parar todas as coisas boas ou interessantes desta vida. As livrarias, e muitas mais, continuam lá pelo centro da cidade.

Idem o restaurante chinês que eu adorava, mas que me ficou de difícil acesso: algo assim como ir até mais que dois quarteirões de casa. Exagero? Um pouquinho talvez. O exagero é privilégio de quem foi descomedido em ato e fato e que depois teve de se limitar a só falar de um e outro. Pior: falar às vezes sozinho mesmo.

NO COLETIVO

Estava eu no metrô com o amigo para o programa de que já falei, e depois deixei de lado, com o objetivo exclusivo de exemplificar os males do tabagismo.

Não me peçam para jurar que é verdade, que eu ainda tenho alguns pudores. Quando saltamos e já estávamos na primeira livraria, meu amigo, como na imitação de um cartum barato, deu com uma das mãos na testa. “Bolas! Eu deixei meu guarda-chuva no metrô!”.

Pois é, meu amigo usava não só a exclamação “bolas!” como também saía à rua de guarda-chuva. Pelo menos quando em Londres. Achava que era obrigatório, acostumado que estava a seus anos de chumbo no Brasil.

Serenei-o. Expliquei que, quando terminássemos nossa ronda gastro-cultural, daríamos uma passada no depósito de Achados e Perdidos do metrô e lá recuperaríamos o tal do guarda-chuva.

Ele riu. Perguntei de que ria. Ele me explicou que ria de minha ingenuidade, acrescentando que ninguém no mundo se dá ao trabalho de achar um guarda-chuva no metrô e depois se dá ao trabalho de levá-lo aos Achados e Perdidos.

Ponderei que estávamos em Londres, cidade onde as coisas são feitas e se passam de forma diferente. Friso, para sacar de um calendário, apenas para mostrar que era, ou deveria ser, 1970 ou 1971, ou seja, na era pré-Thatcher, mas já pós-Beatles.

Fez-me o amigo aquela expressão de dubiedade que encontramos nos romances menores de Eça de Queiroz. Respondi à altura, só que como nos melhores romances de Eça: com uma cara de que ele não perderia por esperar. Em compasso lusitano e de boa qualidade fomos aos livros, aos discos e ao china-pau. Depois...

NO TAL DEPÓSITO

Lá pelo fim da tarde, mesmo com todo o ceticismo de meu companheiro, fomos até a estação de Waterloo, do outro lado do Tâmisa, conferir o por mim louvado depósito de Achados e Perdidos do metrô.

Atendidos, expliquei a perda – reparável? Irreparável? – sofrida pelo distinto rapaz ao meu lado. Do outro lado do balcão, o cidadão perguntou-me se poderíamos descrever o guarda-chuva. Sim, claro: pano preto, cabo de madeira em formato de jota et cetera.

Na época, tudo isso era facílimo para mim. Pintei o retrato falado num tom eloquente e em voz quase que embargada. Afinal, éramos estrangeiros – esse eterno mistério para os ingleses. O distinto foi lá dentro e voltou com um guarda-chuva na mão.

O amigo a meu lado quase dá um urro de satisfação: “É ele! É ele!”. Só faltou beijar o profissional e o objeto reencontrado. Se não me engano, tivemos de de dar a hora e a linha de metrô em que quase nos separamos para sempre daquilo que já estava prestes a fazer parte de nossa família.

E nos mandamos. Lembro-me que já era hora do rush e tivemos de ir sacolejando no vagão do metrô, agora, na ordem, primeiro pegar a linha Northern, já conhecida como a “misery line”, antes de fazermos a baldeação (ah, fazer a baldeação! Como era bom fazer baldeações!) para a Piccadilly, que nos levaria de volta a Gloucester Road, nosso ponto inicial de partida.

DESENLACE

Se o infeliz que me lê chegou até este parágrafo, já terá deduzido o que na época nem me passou pela cabeça de tabagista contumaz (podia se fumar no metrô e até no cinema naqueles anos. Esperavam então o quê?): que meu amigo mentira e aceitara o primeiro guarda-chuva que o honrado funcionário da então companhia estatal nos mostrara.

Exato. Ele me confessou acariciando o guarda-chuva - o novo guarda-chuva -, chegando mesmo a compará-lo mais que favoravelmente ao verdadeiro guarda-chuva, possívelmente agora perdido para sempre.

Fiquei fulo da vida, nesses tempos em que fulo da vida se ficava. Eu queria demonstrar a pacata eficiência e ingênua honestidade dos ingleses, meu camaradinha interessado apenas em me demonstrar o misto quente de burrice e safadeza dos mesmos ingleses.

Acharia eu, por acaso, que alguém recusaria o primeiro guarda-chuva, decente ao menos, que lhe mostrassem? Seria eu tão burro ao ponto de acreditar que uma pessoa se daria ao trabalho de levar até ao raio do depósito um mero, um simples, um humilde guarda-chuva?
Tentei uma inexpressão. Nunca foi meu forte. Procurei pensar. Outro ponto fraco.

Consegui uma saidinha matreira. Respondi com uma pergunta, tal e qual recomenda a cartilha dos iniciantes nas delícias da política: perguntei apenas uma coisinha: e o guarda-chuva que o cara do depósito foi lá dentro buscar? Como é que o bruto foi parar lá? Alguém achou e entregou. Claro.

Até hoje, não entendo a moral da história. Onde eu estava e como lá fui parar. Nem sei exatamente o que houve. Ou o que ainda há. As pessoas de guarda-chuva continuam por aí. Perdendo e achando-os. Andando rápido pra cá e pra lá.

Eu paro, pego chuva, gripe e pioro de tudo. Meu amigo é assessor de imprensa de senador brasileiro. Tudo vai da pior maneira possível no pior dos mundos. É só o que sei.

*Escritor e Jornalista da BBCBrasil, Ivan Lessa, que já foi da turma do Pasquim e da redação da revista Senhor, é autor dentre outras publicações, de O LUAR E A RAINHA (Companhia das Letras).
Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/10/071001_ivanlessa_tp.shtml

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