segunda-feira, outubro 15, 2007

JUSTIÇA - MINISTÉRIO PÚBLICO INVESTIGA DECLARAÇÃO DE MATILDE SOBRE RACISMO

Denize Bacoccina
De Brasília

A PROCURADORIA DO DISTRITO FEDERAL(PR-DF), ORGÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO, INSTAUROU UM PROCESSO PARA INVESTIGAR SE A MINISTRA MATILDE RIBEIRO (FOTO), TITULAR DA SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICA DA PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL (SEPPIR), COMETEU CRIME DE INCITAÇÃO AO RACISMO AO DIZER, EM ENTREVISTA A BBC BRASIL, QUE “NÃO É RACISMO QUANDO UM NEGRO SE INSURGE CONTRA UM BRANCO”.


O processo surgiu a partir da representação do Codhes (Instituto de Cooperação para o Desenvolvimento Humano e Social), pedindo à Procuradoria-Geral da República que a ministra explicasse o que quis dizer com a afirmação. A Codhes é uma ONG com projetos de inclusão social em comunidades carentes, voltados para crianças, mulheres e negros. O PGR analisou o caso e, no fim do mês, o remeteu ao PR-DF, onde ficou a cargo da procuradora Lívia Nascimento Tinôco, procuradora-chefe substituta do órgão.

De acordo com a assessoria de imprensa do PR-DF, o caso foi transferido porque a ministra não tem foro privilegiado, já que ela é titular de uma secretaria especial, vinculada à Presidência. O procurador-geral só investiga casos relacionados ao presidente da República e ministros.

A procuradora não quis dar entrevista. Disse que ainda não analisou o caso porque ainda não viu o teor das declarações da ministra. Até agora, a procuradora só enviou uma carta à BBC Brasil solicitando a íntegra da entrevista.

A presidente da Codhes, Abiail Ferreira, disse à BBC Brasil que entrou com a representação no MP porque recebeu muitos e-mails questionando a entrevista, a maior parte de negros que não gostaram de declaração da ministra pedindo um posicionamento da Codhes.

“Eu quero saber o que ela quis dizer. E nada melhor do que ela mesmo se justificar”, afirmou. “Eu não tenho opinião formada. Só quero ouvir a justificativa dela e como entidade fomos chamados a nos posicionar”, disse.

A entrevista com a ministra foi publicada no dia 27 de março e provocou muitas manifestações de autoridades. Na imprensa, muitas cartas de leitores e mensagens de internautas, a grande maioria condenando as declarações da ministra.

O governo defendeu Matilde Ribeiro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não comentou em público, mas o vice-presidente, José Alencar, disse que o trabalho da ministra era importante para o país e que não existe racismo no Brasil.

No mesmo dia, no fim da tarde, a Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial divulgou uma nota dizendo que “a frase 'não é racismo quando um negro se insurge contra um branco' aparece no título de maneira descontextualizada, induzindo o leitor ao equívoco”. “A ministra deixa claro, no decorrer da conversa, que 'não está incitando' esse tipo de comportamento”, afirma a nota.

No dia seguinte, ela disse em entrevista ao site do Partido dos Trabalhadores, que queria “se reposicionar” sobre o tema, e afirmou que os excluídos lutarem pelos seus direitos "não é uma forma de racismo. É, sim, uma forma de se afirmar como cidadão".

"Embora eu tenha dito isso num contexto de uma resposta muito mais ampla há poucos dias, o que causou uma polêmica, vou me reposicionar: o racismo e a discriminação racial são existentes na sociedade brasileira", disse Matilde Ribeiro ao portal do PT.

"Racismo é uma forma de manifestação existente em várias sociedades, não apenas no Brasil, e está balizado por poder. Quem tem poder econômico, político, poder de decisão, toma decisão excluindo quem não tem”, afirmou.

A ministra foi procurada pela BBC Brasil nesta quinta e sexta-feira, para se pronunciar a respeito do processo no Ministério Público.

A assessoria de imprensa da Secretaria informou que a ministra estava em São Paulo e que “seria muito difícil” falar com ela antes de segunda-feira. A ministra integra a comitiva do presidente que visita quatro países africanos na próxima semana.

VEJA A ENTREVISTA:

BBC Brasil - De acordo com as estatísticas, a proporção de negros abaixo da linha da pobreza na população brasileira é de 50%, enquanto entre os brancos é de 25%. Quando isso vai começar a mudar?

Matilde Ribeiro - As ações neste momento ainda são na ordem da estruturação das políticas. Por exemplo, no Ministério da Saúde estamos incluindo o quesito cor nos formulários. Precisamos ter referência do que adoece e morre a população brasileira, para poder ter programas específicos.

BBC Brasil - A secretaria já tem quatro anos, o que se pode perceber de resultado prático neste período?

Matilde Ribeiro - Na educação, uma lei de 2003 obriga o ensino da história e cultura afro-brasileiras para as crianças, desde o início. O processo de implementação está em curso. É muito difícil ter números, resultados concretos.

Mas já tem alguns resultados. Por exemplo, o (programa) Prouni, de bolsas de estudos para alunos carentes de escolas, já concedeu em menos de três anos mais de 200 mil bolsas no Brasil, dos quais 63 mil negros e 3 mil indígenas.

BBC Brasil - E em quanto tempo a senhora acha que poderemos ter uma situação de igualdade, onde as pessoas sejam julgadas pelo mérito, independentemente da raça?

Matilde Ribeiro - O Brasil tem 507 anos. Há quase 120 anos, em 1888, foi assinado um decreto como este que o presidente assinou dizendo que não havia mais escravidão no Brasil.

Só que não houve uma seqüência. Hoje, o fato de os negros e os indígenas serem os mais pobres entre os pobres é resultado de um descaso histórico. Então fica muito difícil hoje afirmar quanto tempo.

BBC Brasil - Como o Brasil se coloca no contexto internacional? O Brasil gosta de pensar que não tem discriminação e gosta de se citar como exemplo de integração. É assim que a senhora vê a situação?

Matilde Ribeiro - É o seguinte: chegaram os europeus numa terra de índios, aí chegaram os africanos que não escolheram estar aqui, foram capturados e chegaram aqui como coisa. Os indígenas e os negros não eram os donos das armas, não eram os donos das leis, não eram os donos dos bens de consumo. A forma que eles encontraram para sobreviver não foi pelo conflito explícito.

No Brasil, o racismo não se dá por lei, como foi na África do Sul. Isso nos levou a uma mistura. Aparentemente todos podem usufruir de tudo, mas na prática há lugares onde os negros não vão. Há um debate se aqui a questão é racial ou social. Eu diria que é as duas coisas.

BBC Brasil - E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?

Matilde Ribeiro - Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos Estados Unidos. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros.

A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou.

BBC Brasil - Neste mês, a Grã-Bretanha comemora os 200 anos da proibição do comércio de escravos, coisa que no Brasil só aconteceu muito tempo depois. O Brasil ainda continua atrasado nesta área?

Matilde Ribeiro - Não, nós temos acompanhado os fóruns internacionais. O Brasil é um dos países mais progressistas neste aspecto de legislação e de ação efetiva. A legislação no Brasil é extremamente avançada. Não é pela via legal que o racismo acontece.

O que falta é mudança de postura das pessoas. Não adianta só o governo fazer. Muito já foi feito, mas como você disse no início: alterou os índices? Ainda não, portanto temos muito a fazer.

Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/10/071012_matildeprocessodb.shtml http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/03/070326_ministramatildedb.shtml

Nenhum comentário: