segunda-feira, agosto 06, 2007

CULTURA AFROBRASILEIRA

TODOS OS CAMINHOS DO MUNDO – HISTÓRIAS RETRATADAS NAS CANÇÕES DO CULTO AFRO PRESERVAM A CULTURA YORUBÁ

Os filhos de Oxalá, Oxum e Iemanjá ficam atentos quando a ìyá tebexê começa a cantar: "Ayê sharidan dan dan. E ayê cota megê ayê. Ayê cota megê. Ayê sharidan dan dan ayê cota megê". Pegam rapidamente o pano-da-costa e se preparam para, no momento exato, abrir o tecido, separando Iansã e Ogum. Um espectador mais desatento talvez não perceba a importância do gesto, mas as senhoras da voz bem sabem que aquele é um momento arriscado, em que é preciso ter atenção máxima. Os versos da cantiga recriam uma das maiores lutas entre dois orixás poderosos: Iansã e Ogum.
Movidos pela ira que só um grande amor pode causar, os dois brigam de forma tão violenta que Ogum corta Iansã em nove pedaços, e ela o divide em sete partes. Alguns dizem que o motivo da raiva foi o ciúme que Ogum nutria por Iansã e Xangô, com quem, de fato, ela viria a se unir depois. "Ogum corta Iansã em nove pedaços, que são transformados em nove céus, e ela corta ele em sete pedaços, que são as sete encruzilhadas do mundo".
É exatamente por isso que, no momento em que se canta essa música, é preciso separar Ogum e Iansã com o pano-da-costa. Entoar seus versos é recriar essa história, daí a necessidade de afastá-los no instante em que começariam a se cortar, para que os dois se acalmem. Mais do que contar a história, "essa cantiga guarda a explicação sobre como se originou o título de Oyá Yámessan Orum: Iansã, a senhora dos nove céus. É o que quer dizer uma das saudações de Oyá. E também Ogum Iê Ogum Megê: Ogum, o dono dos sete caminhos", explica a egbonmi Cici.
Isso explica porque, se seu irmão Exu é o senhor das encruzilhadas e determina o que pode ou não passar, Ogum é o dono dos caminhos em si, das ligações que se estabelecem entre os diferentes locais. O número sete está presente em todos os lugares consagrados a Ogum, inclusive por instrumentos de ferro em numero de sete.
Músicas como esta, histórias e relatos foram elementos importantes na preservação da cultura iorubá e jeje no Brasil. "Muitas vezes, o que fundamenta isso são as cantigas, porque dentro delas há orikis que vão cantar a linhagem da pessoa, são sua história oral. Como aquilo que mestre Didi cantou na África e o Rei de Ketu reconheceu e falou: "Ah, você faz parte da linhagem real", diz o professor nigeriano Félix Ayoh´OMIDIRE.
AS ESPOSAS DA CASA
Ele conta que, na cultura iorubá, existe até uma categoria chamada de Obìnrin ilé, termo que significa "as esposas da casa", que seriam como as iaôs dentro do candomblé. Elas participam dos fundamentos e conhecem os orikis daquela família. Nas festas de batizado ou casamento, quem canta, na maioria das vezes, são elas. "E elas até usam isso como um tipo de poder, porque os homens, quando elas cantam, têm obrigação de apreciar, de agradecer, botando dinheiro pra elas. Elas tiram um pano, botam no chão em frente aos homens da família. Aí eles vêm, dançam um pouco com elas, cantam um pouco e botam o dinheiro. Assim, elas dançam de casa em casa, e, no fim do dia, recolhem uma grande quantia de dinheiro, que vão repartir entre si", relata Ayoh´OMIDIRE.
Em terras brasileiras, é claro que a música trazida pelos negros não ficou restrita ao ambiente religioso. "Existem registros de escravos que cantavam enquanto carregavam peso. No romance Jubiabá, de Jorge Amado, os negros cantam, só que aí é de tristeza. Em Mar morto, quando Maria Clara canta, o barco vai melhor", cita Milton Moura.
Há quem acredite que, talvez mais do que qualquer outro orixá, as filhas de Oxum tenham um dom especial para cantar. Assim como as mulheres que entoam as cantigas são, a um só tempo, delicadas e vigorosas, Oxum é doce à primeira vista, mas se observada bem de perto ganha contornos mais rígidos. Talvez uma característica das mulheres que sabem exatamente o poder do encantamento que exercem.
"Oxum mostra uma coisa, mas se você vai pesquisar profundamente, descobre que ela realmente é perigosa, ela tem uma dualidade... Então a gente cultua a boa parte dela, a parte que é a mãe, que é doce, que encanta. Durante o padê, a gente faz a obrigação para as mães ancestrais, para que tudo esteja bem e elas não nos incomodem", explica dona Cici, com ar de mistério.
Na opinião da egbonmi do Ilê Axé Opô Aganju, Oxum é uma das grandes personalidades para cantar e para jogar búzios. "As pessoas sabem que as grandes mulheres que jogam búzios são a maioria de Oxum, dado os caminhos dela para o lado de Ifá. E também Iemanjá, porque ela foi uma das esposas de Ifá. Em alguns mitos, Oxum é filha de Ifá. Por isso, no jogo de búzios, o que Ifá fala, Oxum interpreta".
É justamente uma filha de Oxum que guarda a responsabilidade de entoar os cânticos do terreiro Ilê Axé Opô Aganju, em Lauro de Freitas. Maria Clara Daniel de Paula, a egbonmi Dadá de Oxum, descende de uma família tradicional da Ilha de Itaparica, ligada ao culto dos ancestrais, chamados de eguns. Foi lá em Ponta de Areia, onde nasceu, que aprendeu as primeiras cantigas, guiada por seu pai, o sacerdote da religião do eguns Crispim Daniel de Paula.
Até hoje, ela se emociona quando as pessoas comentam: "Você puxou a seu pai, tem o mesmo jeito dele para cantar". Há pouco mais de de um ano, numa das festas do Aganju, ela foi surpreendida por Xangô, ao ser escolhida para ocupar o posto de ìyá tebexê. "Antes, eu sempre cantava, mas não tinha essa responsabilidade, esse compromisso que eu tenho hoje", compara. A fama das dessas detentoras das vozes mais poderosas se espalha rápido. Tanto que nunca passam despercebidas quando vão a festas em outros terreiros. Dadá conta, por exemplo, que ao chegar à festa no terreiro de uma filha-de-orixá do Aganju, foi recebida com a frase: "Venha assumir seu cargo", em uma espécie de reverência ao posto da ìyá tebexê. Numa viagem recente a São Paulo, aconteceu o mesmo. "Quando descobriram, me botaram pra cantar. No fim, cantei até em axexê".
Curiosamente, mulheres ligadas aos cultos de Oxum e Logunedé eram as únicas, na tradição iorubá, que podiam desempenhar uma função que hoje, nas casas de candomblé, é destinada exclusivamente aos homens: o toque dos instrumentos percussivos. "Existem documentos fotográficos aqui na Fundação Pierre Verger que mostram mulheres que cantam e tocam para os orixás Logunedé e Oxum na cidade de Ilesá, que aqui tomou o nome de Ijexá", revela dona Cici, que trabalha na fundação. Elas tocavam com as mãos, num tambor de duas faces amarrado ao pescoço. Aqui, o ritmo feito por aquelas mulheres ficou conhecido como ijexá, que é tocado em afoxés como o Filhos de Gandhy. "O ijexá tomou conta não só do candomblé, mas dos afoxés e, por conseguinte, da MPB", analisa o compositor Jaime Sodré.
Também faz parte da casa de Oxum um orixá pouco conhecido aqui: Ayan Agalu. "Ele é o orixá dos tambores", diz dona Cici. Sua energia é fundamental para que os tocadores desempenhem bem sua função, ao lado das ìyá tebexês, e possam possibilitar a incorporação das divindades em seus filhos.
Hoje, nas casas de candomblé, ao menos nas festas e rituais, é proibido às mulheres tocarem os atabaques. O posto de quem coordena essa atividade é exclusivamente masculino. São os alabês (ketu), xicarangomas (angola) e runtós (jeje). Na opinião de Jaime Sodré, há uma forte ligação entre a proibição das mulheres tocarem tambores publicamente e o fato de o Carnaval ter sido executado principalmente pelos homens. "Por isso, eu considero revolucionárias três posturas: a do Ilê Aiyê, em ter a primeira cantora, Graça Onaxilê, num bloco que é prioritariamente masculino, apesar da liderança religiosa de mãe Hilda; a banda Didá e o grupo A Mulherada. Tratar da questão dos tambores na mão da mulher é tocar alto para se libertar", afirma Sodré. Fonte: Adriana Jacob -www.correiodabahia.com.br

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