segunda-feira, maio 04, 2009

Pega ou não pega?

Ao receber a notícia, eles pensavam que não viveriam seis meses. Estão vivos até hoje. Mas o dia-a-dia é cruel. Valéria era uma menina rica que embarcou com o pai num cruzeiro no Natal de 1986. Ambiente estritamente familiar.

Vovós, netinhos, papais e mamães divertiam-se na piscina e nos jantares de gala. Foi nesse idílio, imune aos perigos da terra firme, que a garota de 15 anos conheceu o primeiro namorado. Com o surfista, dez anos mais velho, perderia a virgindade. E dele pegaria o vírus HIV. No ano que vem, a paulistana Valéria completará 20 anos de vírus. Quando recebeu o diagnóstico, as pessoas viviam em média seis meses depois da notícia. Aos 18 anos, Valéria era uma menina sem perspectivas. "A coisa mais humana que existe é a capacidade de projetar. Não vemos um cachorro fazendo planos, mas o homem vive disso", diz ela. "Depois do HIV, perdi essa habilidade. Longo prazo para mim eram três meses."

Valéria não morreu em seis meses. Nem em seis anos. Duas décadas se passaram e a morte não veio. A vida ficou suspensa. Por muitos anos, não valia a pena cursar uma faculdade ou pensar em casamento.

O horizonte começou a mudar em 1996. Valéria passou a usar o coquetel de medicamentos contra o vírus HIV que acabara de ser lançado. E voltou a traçar objetivos. Em 1997, publicou uma autobiografia, que já está na 19a edição e vendeu mais de 200 mil exemplares. Aos 35 anos, hoje ela estuda Jornalismo e percorre o país fazendo palestras em escolas.

A história de Valéria não é única. Ela está entre os cerca de 40 milhões de pessoas no planeta que convivem com o HIV. A aids é hoje uma ameaça global que já matou 25 milhões e dizimou o continente africano, onde há 25 milhões de soropositivos. A cada ano, 5 milhões de pessoas contraem o vírus, cerca de 90% em países em desenvolvimento. Isso equivale a 14 mil novas infecções todo dia.

A cada minuto, dez pessoas são infectadas. Conte até seis e - pumba! - alguém acaba de contrair o HIV. No Brasil, desde o início da epidemia, há 25 anos, o vírus já contaminou mais de 820 mil pessoas.

Dessas, mais de 370 mil desenvolveram aids e 171 mil morreram. Estima-se que, como Valéria, haja 650 mil portadores do HIV no Brasil. Muitos tentam domar o vírus desde os primeiros anos da epidemia.

Nas últimas semanas, a aids completou 25 anos desde a descrição dos primeiros casos. ÉPOCA fez uma extensa investigação sobre como sobrevivem as pessoas que tiveram o corpo e a alma moldados pelo vírus ao longo destes anos. Estão vivas, é verdade. Mas só quem convive com elas no dia-a-dia sabe em que condições. "Levo vida normal, mas as pessoas não têm idéia dos efeitos colaterais que enfrentamos", afirma Valéria.

O vírus parece estar sob controle. Mas a aparência dela não é mais a mesma. Assim como a maioria dos pacientes em tratamento com o coquetel antiaids, tido como uma esperança dez anos atrás, Valéria sofre de um desarranjo na distribuição de gordura no corpo conhecido como lipodistrofia.

O rosto, os braços e as pernas afinaram. As veias ficaram aparentes. A gordura migrou para a barriga e para os seios. Valéria diz que não deixa de ir à praia de biquíni. Mas se incomoda com os olhares curiosos. O estranhamento diante do espelho mexe com a auto-estima e tira qualidade de vida.

Nos grupos de apoio a portadores do HIV, ouvem-se relatos de mulheres que não tiram a roupa nem para tomar banho. Mergulham em depressão e abandonam o tratamento na ilusão de recuperar os contornos perdidos. Até hoje não se sabe se a lipodistrofia é provocada pelos medicamentos ou pela ação conjunta dos remédios e do próprio vírus. Nos casos mais graves, surge uma corcova na altura da nuca, conhecida como giba de búfalo.

A grande preocupação é que a lipodistrofia volte a provocar o estigma que marcou a doença nos primeiros anos. "A lipodistrofia é uma das piores coisas que estão acontecendo com a gente agora", diz Valéria. Para evitar que os portadores do vírus voltem a ser discriminados na rua, o Ministério da Saúde passou a oferecer procedimentos estéticos como o preenchimento facial e até cirurgias plásticas. As filas são grandes e nem todos são atendidos.

A lipodistrofia é apenas um entre os vários efeitos colaterais do coquetel antiaids - que, embora recomendado pela maior parte dos especialistas para uma doença até hoje incurável, está longe de ser um tratamento ideal. As drogas contra o HIV costumam ser altamente tóxicas. Além do impacto na aparência, elevam os níveis de colesterol, de triglicérides, provocam diabetes e falência do fígado.

Para amenizar os problemas, os sobreviventes precisam seguir uma dieta rigorosa - sem gordura nem carboidratos - e fazer muito exercício físico. "Nos países ricos, os portadores do HIV já morrem mais de doenças cardiovasculares que de aids", afirma o infectologista Caio Rosenthal, do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo.

Veja mais: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG74518-5990-422,00-ANOS%20DE%20AIDS.html

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